Contar histórias…
Fazemos isso o tempo todo, naturalmente, quase sem perceber. E nos divertimos muito com isso. O prazer que sentimos em contar e ouvir histórias já nos reuniu em volta do fogo, e hoje lota os bares todas as noites. Mesmo quando não temos muito o que fazer, lembramos de histórias vividas, lidas ou contadas, especulamos sobre o que teria sido a vida “se…”, e fazemos projetos tentando encontrar qual será o melhor caminho.
É por isso também que vamos ao cinema e compramos livros. Para ver e ouvir histórias. Para vivê-las.
Por outro lado, só há livros e filmes porque alguns de nós sentem o incontrolável desejo – ou a incontornável missão – de registrar histórias. De escrevê-las em vez de só contá-las.
Escrever é contar histórias – dissemos.
Mas vimos também que há uma relação de continuidade entre pensar e escrever. De certo modo, o pensamento já se ordena de modo a virar escrita.
Mas essa passagem… Bem, eu ia dizer que ela “não é simples”, mas não é bem isso. Simples ela é, porque a escrita é irmã do pensamento. Digamos então assim: ela é simples, mas não é fácil.
E por que não é fácil? Porque, quando apenas pensamos a história, temos diante de nós, em nossa mente, um quadro, onde todos os seus elementos são simultâneos entre si. Quando vamos contá-la, temos de colocar esses elementos em sucessão.
Ou seja passamos da simultaneidade à sucessão. E isso implica em alguns problemas. Se estamos contando essa história para os amigos na mesa de um bar, esses problemas podem ser contornados com ênfases, gestos, repetições, comentários – tudo vai se agregando de modo a contornar as dificuldades narrativas. Afinal, são nossos amigos e estão curiosos e interessados em que a história chegue ao fim.
Mas, quando escrevemos, não temos à mão esses recursos para contornar os problemas. Temos de recorrer a outras ferramentas, pois vamos escrever uma história para ser lida depois, por outros, em outros lugares e, quem sabe, em outros tempos.
Basicamente, precisamos do que vou chamar de “modelo”. Também poderíamos chamar de “estrutura”. Prefiro “modelo” porque “estrutura” me faz pensar em algo estático – quando prefiro que a gente sempre tenha em mente que o pensamento (e portanto o ato de escrever) é um processo dinâmico e incessante, como definimos no começo. Ele se move.
O modelo que proponho é velho conhecido nosso: estímulo – elaboração – reposta.
Acho que podemos admitir sem muito dificuldade que genericamente é assim que o pensamento funciona como processo. O pensamento e tudo mais.
Também é fácil perceber que esse modelo estímulo – elaboração – resposta é análogo à ideia de causa e efeito de que falamos anteriormente.
Então vamos lá…
O que vamos chamar de estímulo? O quadro que temos diante de nós – esteja ele em nossa mente, esteja ele diante de nossos olhos. Mas, esteja na mente (porque lembramos ou imaginamos) ou “lá fora” (porque estamos vendo com os nossos olhos) por ora, esse quadro ainda esta “dentro” de nós. Isto é, ainda não é história.
O que vamos chamar de elaboração? À solução daqueles problemas de passagem do pensamento à palavra, da simultaneidade do quadro à sucessão das sentenças, a que me referi acima.
E o que vamos chamar de resposta? Obviamente, o texto.
Vamos começar falando dos problemas da elaboração. Quais seriam, afinal?
Pense, num quadro; qualquer um. Vou facilitar nossa vida e colocar abaixo um quadro de um dos meus pintores favoritos, Edward Hopper.

Imagine que esse quadro é a história que queremos contar. O quadro de uma história, ou de um trecho dela. Já falamos que quando contamos uma história, temos sempre em mente um quadro que vai nos servindo de referência.
Se eu disser para você: imagine uma história a partir desse quadro. Qual seria a sua primeira pergunta? Eu sou capaz de apostar que seria a mesma que eu sempre me faço: “Por onde começar?” Ou: “Qual será o meu ponto de partida?”
Parece uma pergunta trivial, mas não é. Do ponto de partida depende todo o desenvolvimento da história que vamos contar. Ainda mais se vamos escrevê-la.
Mal comparando, o efeito é parecido com ler duas traduções diferentes do mesmo texto. Ainda mais se for poesia.
Veja só:
CHANSON D’AUTOMNE
Paul Verlaine
Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.
Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.
Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.
CANÇÃO DO OUTONO
Onestaldo de Pennafort
Os longos sons dos violões,
pelo outono
me enchem de dor
e de um langor
de abandono.
E choro,
quando ouço,
ofegando,
bater a hora,
lembrando os dias,
e as alegrias
e ais de outrora.
E vou-me ao vento
que, num tormento,
me transporta de cá pra lá,
como faz à
folha morta.
CANÇÃO DE OUTONO
Nelson Ascher
Violinos com
seu choro assom-
bram o outono
e eu, corpo mor-
to de torpor,
me abandono.
Quase sem ar,
desmaio ao soar
da hora enquanto,
lembrando em vão
os dias de então,
caio em pranto.
E o vento cruel
leva-me ao léu
pouco importa
aonde, em vaivém,
vago que nem
folha morta.
CANÇÃO DE OUTONO
Paulo Mendes Campos
Os longos trinos
Dos violinos
Do outono
Ferem minh’alma
Com uma calma
Que dá sono.
Ao ressoar
A hora, alvar,
Sufocado,
Choro os errantes
Dias distantes
Do passado.
E em remoinho,
O ar daninho
Me transporta
De cá pra lá,
De lá pra cá,
Folha morta.
Enfim, esse é o primeiro e o principal problema de um texto: por onde começar.
Mas, vamos lá, voltemos ao quadro de Hopper. Qual será o seu ponto de partida?
Provavelmente o mesmo que o meu e, acredito, do pintor: aquele homem solitário sentado no parapeito da janela que observa o sol nascer.
E aqui já começa a etapa da elaboração.
Podemos, por exemplo, imaginar que aquele homem é o próprio Hopper. E que, portanto, ele pintou uma reminiscência sua. Então veja como os tempos se sobrepõem: há o Hooper lembrado, que está no quadro; há o Hopper que pintou essa lembrança; e há o Hopper que está agora diante do quadro. Não é interessante? É disso que falo quando me refiro a esse domínio privilegiado que só o homem tem do tempo…
Temos então três pontos de partida temporais: o presente do quadro pronto; o passado do quadro sendo pintado; e o passado do passado (sim, esse tempo verbal existe!), quando a imagem se registrou na memória.
Mais adiante, falaremos sobre os tempos verbais.
Mas também poderíamos imaginar toda uma história para esse homem, tomando o quadro como simples inspiração.
Por ora, o importante perceber o processo cognitivo-criativo ou a passagem da cognição à criação, se dá como todos os outros processos que a gente conhece: estímulo, elaboração e resposta.
E esse processo de troca com o mundo e com os outros é incessante.
Tendo fixado essa ideia, podemos derivar dela, por analogia, outros modelos semelhantes para nos ajudar a esclarecer o processo cognitivo. Por exemplo:
ver – refletir – expor.
Logo no começo, dissemos que os sentidos convergem para produzir uma visão, um quadro mental do que é pensado. Comumente, essa visão coincide com o que é visto. Isto é, eu vejo o mundo agora. Mas nem sempre é assim. Quanto penso no passado ou no futuro, a mente “vê” objetos que lhe são trazidos pela memória e a imaginação, e não pelos sentidos.
Mesmo no tempo presente, há o “gato escondido com o rabo de fora”, que é caso típico em que a representação imediata que tenho do mundo é “completada” pela ação da memória e da imaginação.
Repare que este é também um bom exemplo de como as faculdades mentais sempre operam juntas. Porque, para que eu possa dizer que aquele rabo é de um gato escondido, é preciso que eu antes:
- 1. já tenha abstraído da minha experiência o que é um gato.
- 2. Já tenha fixado esse conceito na memória.
- 3. Use a imaginação para completar o quadro com o que “falta” do gato.
E tudo isso acontece simultaneamente, sob a coordenação do entendimento.
Então repare que, da visão pura e simples de um rabo que aparece, deduzimos um gato inteiro. E como isso foi feito? Por reflexão.
A reflexão cognitiva funciona mais ou menos como nos espelhos: ela busca produzir mentalmente um reflexo do que que estou sendo visto, imaginado, lembrado, pensado naquele momento. A reflexão quer produzir um reflexo, um quadro que registre com a máxima perfeição o que estou vendo.
A reflexão é exatamente aquela elaboração a que nos referimos no nosso modelo inicial. Há um estímulo inicial – que pode vir de qualquer faculdade – e esse estímulo é elaborado para produzir uma imagem, um quadro. Para que, em seguida, eu possa expor o que é isso que vejo, lembro, imagino, fechando assim o processo.
Mas esse processo, como não canso de enfatizar, é incessante, e só formalmente podemos reduzi-lo a um esquema.
Podemos resumir tudo isso numa tabela:
estimulo | ver |
elaboração | refletir |
resposta | expor |
Mas podemos elaborar ainda mais essas analogias.
Podemos dizer que esse primeiro momento é uma simples sensação. “Algo ocorre”, mas ainda não sabemos muito bem o que é.
Mal comparando, é como quando, à noite, ouvimos ou pensamos ouvir, um ruído e nos levantamos para descobrir “o que é”. Nesse caso, o que queremos fazer é passar da sensação à cognição: queremos saber o que é.
E, digamos, que fosse só o vento movendo as folhas de papel sobre a mesa.
Nesse caso, foi um alívio. Porque não era nada mau. Ou seja, passamos da cognição ao juízo.
Então, repare: houve o estímulo (sensação). Houve a elaboração (cognição). Houve a resposta (juízo).
Podemos também dizer a mesma coisa de um modo mais causal. Há o fato bruto (sensação). Há a definição da causa desse fato (cognição). E há a consequência (juízo), que vai determinar a continuidade ou descontinuidade da história: como não era nada, posso voltar a dormir.
Resumindo tudo isso numa nova tabela:
estimulo | elaboração | resposta |
ver | refletir | expor |
sensação | cognição | juízo |
fato bruto | causa | consequência |
Tenha em mente que isso são analogias que se completam e se esclarecem mutuamente. Isto é, o processo cognitivo pode ser visto sob qualquer um desses modelos parciais e a observação simultânea deles num quadro favorece nossa compreensão do processo.