Fala-se muito em “coesão textual”. Mas o que é isso?
Acho que uma boa definição seria: a relação de unidade que as partes constituintes de um objeto devem manter entre si para alcançar a finalidade pretendida.
Uma bola de futebol, por exemplo, é evidentemente constituída de partes, os gomos, mas costuradas de tal modo que ela nos parece perfeitamente redonda e sem falhas ou costuras aparentes.
No caso de um texto a finalidade é representar a realidade que o texto pretende expor.
A gente pode dizer que coesão é um “princípio econômico”: nada pode estar sobrando nem faltando, e todos os componentes devem estar funcionando em perfeita sincronia e conformidade. Enfim, tudo tem de estar no seu devido lugar. Em uma palavra: concisão.
Isto é: Para cada palavra um objeto, para cada frase um fato.
Nem mais, nem menos.
Logo, a coesão é uma medida.
Toda medida é uma relação entre um objeto e um padrão. O padrão oferece unidades de referência para que se avalie a excelência do objeto: quanto mais próximo do padrão, mais excelente.
Todo padrão é, portanto, um principio de excelência. Um litro de água é exatamente um litro de água. O litro existe para que o “exatamente” possa existir.
A coesão mede o quanto um texto corresponde à realidade.
Toda medida tem unidades de referência.
As unidades de referência do texto são a palavra, a frase e o parágrafo.
A palavra é a unidade básica. Um conjunto de palavras forma uma frase. Um conjunto de frases forma um parágrafo. E um conjunto de parágrafos fora um texto.
Para cada uma dessas unidades há um medida – um padrão conceitual – de coesão.
A medida primária de coesão é a correspondência e dela derivam todas as outras.
A correspondência diz respeito à palavra. Quanto mais exata for a correspondência entre cada palavra e seu objeto, mais coesão se produzirá. Porque:
- Quanto maior a correspondência entre palavras e objetos, maior a coerência da frase.
- Quanto maior a coerência das frases, maior a consistência do parágrafo.
- Quanto maior a consistência dos parágrafos, maior a coesão do texto.
A precisão está intimamente relacionada com concisão: onde uma palavra descreve o objeto, usaremos uma palavra. Se duas são necessárias, então usaremos duas – e não três.
E é importante destacar isso: as palavras descrevem.
Quando digo gato, rosa, navio imediatamente essas palavras despertam em mim a descrição genérica de um objeto. Uma imagem, que a palavra sintetiza e desperta.
Mas quase sempre descrevemos objetos singulares, únicos, específicos: de que tamanho é o gato, de que cor é a rosa, de que tipo é o navio?
Portanto, como já vimos quando falamos das palavras, no capítulo 12, a descrição depende do uso de adjetivos.
Mas, lembre-se: ao menos de início, os adjetivos que nos importam são aqueles que apontam qualidades sensíveis: cor, formato, sabor, textura. Porque essas são qualidades que podemos dizer objetivas.
Da descrição dos objetos, passamos à ação em que eles estão envolvidos: a escolha agora recai sobre os verbos que iremos empregar.
Como encadear as frases com coerência significa ordená-las segundo um fluxo causal que vai da causa à consequência, importa também usar o modo e o tempo verbal corretos.
Assim, podemos dizer que uma frase concatena diversas imagens em um quadro: “O carro vermelho estava parado em frente à loja de ferragens.”
A primeira pergunta que me ocorre é: “Por quê?”. Ou “O que ele está fazendo lá?”
Repare que “carro vermelho” e “loja de ferragens” são imagens singulares e desconexas unidas por um verbo “estar parado” e um conector “em frente a” e que assim constituem um quadro que corresponde já não a um objeto, mas a um fato.
Esse fato exige uma conexão com outros fatos (uma resposta ao meu “por quê”) para começar a se construir como uma história.
A medida de coesão da sucessão das frases é o que a gente chamou de coerência. Isto é, a relação causal que une os fatos entre si e a continuidade ou descontinuidade de sua sucessão.
Um conjunto de fatos que se sucedem segundo um nexo causal constitui um evento. Do mesmo modo, uma sucessão coerente de frases constitui um parágrafo.
A medida de coesão entre os parágrafos é a sua consistência.
A ideia de consistência abrange e amplia as ideias de correspondência e coerência.
A consistência diz respeito à verdade do texto – a verdade que o texto quer revelar ou esconder. Consistência, portanto, diz respeito à verdade em seu sentido forte – seu sentido moral, filosófico, metafítico.
À medida que o texto avança, a cadeia causal se alonga, a relação entre causa primeira e as consequências mais distantes, relacionadas às causas derivadas, vai se tornando mais sutil – e até mais ambígua. O nexo geral do texto tende a se tornar menos evidente.
Por outro lado, o próprio principio de coerência aplicado à sucessão das frases, tende a fazer dos parágrafos unidades mais ou menos autônomas. Mantê-los “amarrados” exige muita atenção.
É comum ver-se, sobretudo em jornalismo, parágrafos que guardam entre si pouca ou nenhuma relação.
O essencial para se manter a consistência entre os parágrafos é saber o que se quer dizer, a tese ou argumento que se defende no texto – ou, ao menos, naquele bloco de parágrafos. Esse é o fio que conduz a história. É a verdade dela.
Tendo em mente esse fio, esse cerne do que se quer dizer ou contar – e pensando os parágrafos como blocos causais que se articulam para construir uma ponte – devemos continuamente checar se o encadeamento causal está realmente forte – consistente.
Fizemos isso com as palavras (na sua correspondência com os objetos); fizemos isso com as frases (na coerência que mantém entre os fatos); e temos de fazer o mesmo em relação aos parágrafos: checar o nexo causal que os une.
É a ideia de consistência que vai nos permitir avaliar o quanto um texto, em aparência coerente e preciso, é de fato verdadeiro ou mera peça retórica. O quanto ele conta a verdade ou tenta escondê-la – seja por má intenção, sela por falta de perspicácia.
Nesse sentido, avaliar a consistência exige atenção, cultura, informação e algum conhecimento de lógica.
Vejamos algumas causas de inconsistência dos textos.
- Causalidade fraca é o erro mais comum. Consiste em estabelecer um nexo causal insuficiente entre dois fatos.
- Generalização indevida é tipicamente o que chamamos de preconceito e que muitas vezes nos conduz a paradoxos.
Por exemplo: “Todo ateniense é mentiroso. Posso dizer isso porque sou ateniense”. Ora, se todo ateniense é mentiroso e eu sou ateniense, como meu interlocutor pode saber se digo a verdade quando acuso todos os atenienses de serem mentirosos?
Mas o paradoxo logo se desfaz se percebemos que o raciocínio parte de uma generalização indevida: é óbvio que a afirmação “todo ateniense é mentiroso” não pode ser verdadeira.
É preciso então estar muito atento às conclusões que extraímos de fatos particulares. Não é porque um ateniense mentiu para nós que podemos concluir que todo ateniense é mentiroso.
- Argumento ad hominen, isto é, baseada na pessoa e não na argumentação em si por ela apresentada. Uma pessoa que nos é antipática ou mesmo um notório criminoso pode mesmo assim apresentar argumentos válidos.
Por exemplo, um ladrão pode ser o legítimo proprietário de um bem. Um assassino profissional pode ter matado alguém em legítima defesa. A premissa cristã do amor ao próximo é perfeitamente admissível por um ateu.
- Anacronismo é um erro comum que consiste em avaliar atos passados à luz de conhecimentos e valores que não eram próprios daquele tempo. Um exemplo interessante é a rejeição do geocentrismo como um modelo simplesmente falso. Na verdade, até hoje a Astrologia e a navegação sem instrumentos usam o modelo geocêntrico (aquele que toma a Terra como o centro imóvel do sistema solar) em seus cálculos.
Se associarmos as faculdades a esses princípios, podemos dizer que a correspondência está intimamente associada à sensibilidade. A coerência, à memória e à imaginação. E a consistência, ao entendimento.
Correspondência | Coerência | Consistência |
Palavras | Frases | Parágrafos |
Sensibilidade | Memória/ Imaginação | Entendimento |
Concluindo: o que chamam de “coesão textual” é o resultado da correspondência das palavras às coisas; da coerência das frases com os fatos; e da consistência dos parágrafos com o evento (ou com a tese) que se apresenta.
Relacionado à coesão está essa coisa ainda mais ambígua e misteriosa denominada de estilo. O estilo é aquela qualidade que distingue os autores e que sabemos o que é desde que não nos peçam para defini-lo.
Há convenções estilísticas que não são de fato regras de estilo. Mas precisão, concisão e clareza são ideias simples de seguir que certamente nos afastarão do ridículo.