3. A dupla natureza do tempo

A percepção imediata e intuitiva da finitude e contingência de todas as coisas se expressa de forma evidente na associação entre as faculdades mentais e as dimensões temporais.

A sensibilidade está obviamente associada ao presente, a memória ao passado e a imaginação ao futuro – compreendido como a sempre hipotética continuidade ou descontinuidade do presente ou do passado.

Ao entendimento, no entanto, é possível atribuir duas funções que definem a peculiaridade de nosso domínio do tempo.

O entendimento unifica e ordena o fluxo natural do tempo ao distinguir o que é sensação, o que é memória, e o que é imaginação. Ou dito de outro modo, o que é presente, passado e futuro.

Desse modo, o entendimento constitui o que podemos chamar de dimensão linear do tempo – o fluxo temporal que corre inexoravelmente do passado para o futuro (e que estranhamente ora parece reduzir o presente a um insignificância inapreensível – o tal do “instante” – e ora parece ampliá-lo a um continuum cujo desgaste nos parece quase imperceptível – o tal do “momento”). É a essa dimensão que chamamos de “realidade”.

Essa função pode parecer trivial, mas basta lembrar do sonho, que nos faz ter sensações de objetos que não estão de fato presentes, para percebermos o quanto essa função é importante. Em última análise, é ela que nos preserva da loucura.

Cabe também ao entendimento a percepção de uma dimensão do tempo paralela a esse fluxo temporal linear que corre do passado para o futuro: a dimensão virtual do tempo, constituída pelo que pode vir a ser ou o que poderia ter sido – uma dimensão que não nos aparece como um fluxo mas como “ilhas de fatos” conectadas à realidade seja como alternativas passadas (quem sabe, ainda possíveis de ser atualizadas), seja como possibilidades reais de continuidade mais ou menos imediata. É essa dimensão que se confunde como o que chamamos de contingência.

“E se…”, é a expressão que define essa dimensão temporal que é a fonte de nossas angústias, mas também o terreno fértil da experimentação científica, da reflexão filosófica e da criação ficcional.


A característica mais marcante da inteligência humana é exatamente essa complexa noção que temos de tempo.

A ação combinada e incessante das quatro faculdades – sensibilidade, imaginação, memória e entendimento – produz esse poder especificamente humano que chamei de “domínio do tempo”, isto é, a percepção da dupla natureza do tempo.

Percebemos que há uma dimensão do tempo que corre inexoravelmente do presente para o futuro e vai se tornando passado a cada instante. Um tempo que é o “fluxo constante da realidade” e se constitui de passado, presente e futuro. Por isso a chamo de dimensão linear do tempo.

Mas também percebemos que existe uma dimensão do tempo, simultânea à dimensão linear, que se constitui dos fatos e eventos que “podem vir a ser” ou “poderiam ter sido”, a dimensão hipotética dos fatos possíveis. Por isso a chamei de dimensão virtual do tempo.

Também percebemos que há uma relação entre essas duas dimensões do tempo, uma vez que os fatos que constituem a realidade foram antes possibilidades que só pela ação de alguma causa vieram a ser fato.

Na verdade, é como se a realidade estivesse imersa num vasto campo de possibilidades que reúne todas as alternativas de continuidade e descontinuidade de cada instante.

Não é difícil conceber essa idéia. Percebemos claramente que, para qualquer ação, por mais ínfima que ela seja, há sempre, no mínimo, a possibilidade de não realizá-la.

Podemos visualizar essa ideia imaginando um gráfico cartesiano que delimita um espaço cheio de pontos.

Cada ponto representa um fato possível. A medida que os fatos se sucedem, isto é, à medida que fatos possíveis são atualizados em fatos reais, eles formam uma linha.

Essa linha representa a dimensão real do tempo. Os pontos dispersos fora da linha representam a dimensão virtual do tempo.

É interessante perceber duas coisas:

  • O conjunto dos fatos passados tende a pressionar a linha em uma determinada direção, enquanto os fatos possíveis ao redor exercem uma atração desviante.
  • À medida que a linha avança, as possibilidades deixadas para trás vão deixando de ser possíveis, se descolorindo até desaparecer.

É fácil perceber isso na vida:

  • Se desde cedo alguém manifeste uma aptidão natural para a matemática, é natural que acabe por se tornar engenheiro e não médico.
  • À medida que envelhecemos e “tomamos rumo” na vida, coisas que poderíamos fazer no passado, deixam de ser possíveis. De certo modo, o que é a morte natural senão o esgotamento de todas as possibilidades de uma vida?

Como veremos mais adiante, os modos e tempos verbais são a expressão gramatical dessa dupla natureza do tempo.


Não é difícil perceber que a dupla natureza do tempo está intimamente relacionada com a dimensão binária da existência

Podemos daí extrair algumas consequências lógicas:

  • A dimensão linear do tempo relaciona-se com a percepção de que tudo é finito.  Isto é, que tudo tem começo, meio e fim. Logo, tudo traça uma trajetória no tempo e no espaço. Isto é, tudo tem uma história.
  • A dimensão virtual do tempo relaciona-se com a percepção de que tudo é contingente. Isto é, tudo que é fato, poderia não ter sido ou sido de outro modo. Logo, a realidade está imersa num campo de possibilidades finitas.

Se juntamos essas duas consequências numa síntese, temos a seguinte conclusão:

Tudo que existe traça uma trajetória num campo de possibilidades finitas.

Não importa se é um ser vivo, uma coisa, um evento, uma ideia.
Todo ser tem uma duração e uma trajetória.
Uma história, enfim.

E é isso que nos interessa aqui: contar histórias.
Porque, como definimos no começo, escrever é contar histórias.


A imagem poética que talvez melhor represente a dimensão virtual do tempo é o mar.

Imagine que o presente é o barco e o mar o vasto campo de possibilidades onde a vida transcorre – com suas escolhas e fatos inesperados – e às vezes até indesejados.

Literalmente viaje nessa ideia. Tente perceber e sentir a realidade dessa analogia, dessa aproximação precária de algo que é real, mas não é visível.

Boa viagem!